Relógio

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Chorei muito qdo li este artigo, dai resolvi compartilhar.


INVISÍVEL...

Chega um dia, depois desse tempo todo, em que a gente fica invisível, moço.
Começou numa tarde como essa aqui, meio cinza, lusco-fusco. Trabalhando, faltavam duas horas e 15 pra sair — parece que foi hoje — e o Zé me avisou que o homem queria falar comigo.
Estranhei. Dez anos e quatro meses lá e dava pra contar nos dedos dessa mão quantas vezes ele tinha me dado bom dia direito. Deu tempo nem pro "licença" e ele já foi despejando número, explicando que a tal economia não ia bem, que era custo, reorganizar (acho que é assim que se fala, né?). Não levou nem cinco minutos. Isso. Meus dez anos terminaram em cinco minutos.
Só pensei na minha filha que tava com tudo pronto pro casório. Falei nada em casa, não. Não sou muito de conversa. A Dulce até me perguntou se era a minha perna doendo de novo. Mas cumpri com minha obrigação. Fiz festa, teve churrasco, paguei os carnês do vestido e banquei o puxadinho pra Renata e o Zé Eduardo. Menino trabalhador. Não deu sorte na vida, mas quem dá, né?
O fundo de garantia terminou com este terno aqui. Ainda tenho a gravata. Tá aí em um desses sacos. Acho que é naquele pequenininho do mercado. O senhor quer mesmo ver? Com os dias a mulher começou a notar e eu falei. Falei mesmo. Sou homem de esconder coisa, não. Devo nada a ninguém. Tem dia que eu ainda escuto o choro dela na cozinha quando soube.
Procurar? De tudo. Faxineiro, lavador, manobra. Até flanelinha eu tentei, mas tudo tem máfia. É só quem é amigo. E meus amigos sumiram. Quer dizer, nas primeiras semanas teve um ou outro que dizia, dava aquela força, né? Falando que ia ajudar. Nada.
A coisa explodiu mesmo quando o Antônio, irmão da Dulce, chegou lá em casa com uma cesta básica. Sou homem de precisar de caridade, não. Mandei correr. Não pagava mais as prestações, comia pão, ovo, o que dava, mas nunca dependi nem de pai, ia viver da caridade de cunhado? Não foi orgulho. Dignidade. Foi isso aí.
Mas a Dulce não entendeu. Mais de 25 anos juntos e acabou tudo em dez. Minutos. Me botou pra fora, gritou, quebrou copo, prato. Quebrou também meu coração. Dizem que ela tá no Maranhão, não sei. Nunca mais vi. Na semana seguinte do acontecido ainda passei lá na frente, mas até a casa da Renata tava fechada. Essa nem tchau me deu.
Fiquei uns dias, acho que dois ou três, na casa do Ramiro que tinha trabalhado comigo e foi um dos poucos que me estenderam a mão. Mas sou homem de viver de favor, não. De lá achei uma marquise mais ou menos que nem essa aqui e me instalei. Mas é o que eu disse pro senhor, é tudo máfia. Lá só ficava conhecido do dono da rua.
Aqui eu tô faz três anos. Em que ano nós estamos? É...é isso aí, três ou quatro. Ninguém me enche, não. A dona Tereza da padaria ali me dá umas sobras. Dessa eu aceito porque tem Deus no coração. Mas se um dia eu sentir que é por pena pego mais, não. Sou lá homem de passar dó pros outros?
Beber? A gente bebe, né? Fazer o quê? Se sobra um trocado eu compro uma branquinha que me deixa quente por fora. Porque por dentro tem mais jeito não.
Como eu te disse quando o senhor chegou, a gente vira invisível. Ninguém nem nota. Passa aqui como se visse só os papelões. Até achei que o senhor era da televisão quando parou aqui. Não é não, né? Não gosto dessas coisas de procurar família, de mexer no passado.
O que tá feito, tá feito. Deus fez e não vai ter homem que faça mudar. Eu queria era um cobertor novo, esse aqui já tá todo rasgado. Não, vou para abrigo nem albergue, não. Lá é tudo máfia, só entra quem eles deixam, quem conhece, quem cumpre as tais das exigências. Eu cumpri as minhas por dez anos e acabei aqui, tem jeito, não. Tá escrito.
Sinto falta mesmo é da minha mãezinha. Subiu faz uns 15 anos. Pelo menos não me viu assim. Mas logo eu tô lá com ela, não é não? Pelo menos no céu não tem máfia. E homem de bem eu sou, isso pode ter certeza.
Repara não, mas vou dormir. Amanhã saio pra catar lata logo cedo. Só uma pergunta: Como foi que o senhor me viu?

(R7 Notícias)

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